Recife - Que os destinos nacionais
sempre surpreendem com sua riqueza cultural, étnica e social não existe
mais dúvida. A questão é saber como esses lugares são interpretados, traduzidos
e explicados por profissionais que trabalham com isso. Os guias de turismo,
os professores, os historiadores, são profissões que requerem talento,
senso crítico, ética e estudo contínuo. É essa síntese de preparo humano e
de profundidade de conteúdo que ressuscita a história escondida nos museus,
nos livros e nos monumentos das cidades. Guias de turismo como Baruque
Bernardo, que atua no Catamaran Tours em Recife, fazem jus à
profissão que têm e doam aos turistas fragmentos da vida pernambucana que
viraram fumaça, se perderam no tempo; colheita de uma miopia coletiva que
tem sementes na pressa e na superficialidade modernas.
Remanescente do mangue
Recife se sobrepõe por sua natureza
arquitetônica e história mais antiga – a colonização holandesa presente nas
construções, por exemplo – e por ser canteiro de grandes mentes que
ajudaram na construção da identidade nacional – Gilberto Freyre, o grande
antropólogo e Paulo Freire, o educador que revolucionou escolas brasileiras
com sua pedagogia crítica. Esses ventos de conhecimento espalharam sementes
férteis nos manguezais de Pernambuco. O guia Baruque é um remanescente
desse mangue.
“A ilha do Recife era um istmo
que vinha de Olinda, a capital da Província , e ex-capital de Pernambuco
entre 1535 e 1827. Aliamos, além da história e da paisagem, todo esse
contexto diferenciado pela Catamaran Tours em uma maneira de ver a capital
pernambucana, a partir dos rios de Recife”, afirma Baruque, dando
início a sua metralhadora giratória de nomes, obras, datas e expressões
pernambucanas.
O passeio, de aproximadamente uma
hora, consiste em navegar pela Bacia do Pina, onde se encontra o Cais das
Cinco Pontas, saída do catamarã, percorrer parte na bacia portuária e
entrar no rio Capiberibe com suas pontes centenárias: a 12 de setembro (antiga
ponte giratória que subia para a passagem de embarcações), a ponte
Maurício de Nassau (a primeira do Brasil), a ponte Buarque de Macedo,
a ponte Santa Izabel (a abolicionista), a ponte Duarte Coelho (a
do Galo da Madrugada) e a ponte da Boa Vista (a ponte de ferro). O
passeio é embalado por sucessos de cantores e compositores da terra como
Alceu Valença, Lenine e Chico Science, esse último expoente do mangue
beat, movimento musical genuinamente pernambucano.
Sotaque e modernidade
A capitania de Pernambuco prosperou
a partir do século XVII em função da produção de cana-de-açúcar e encontrou
sua glória econômica e cultural com a chegada dos holandeses. Essa
informação, resgatada dos livros de história é repaginada com um sotaque
nordestino e de modernidade: “À esquerda as duas grandes torres
residenciais chamadas Duarte Coelho e João Maurício de Nassau, que fazem
alusão ao primeiro governador português e ao primeiro donatário da
capitania de Pernambuco, respectivamente”, diz o professor-guia,
apontando para os dois grandes edifícios de 40 andares cada um que se
sobressaem à margem do rio.
Pedras dos Reinos
“À nossa proa, o antigo palácio
alfandegário, originalmente um convento e a igreja da madre de Deus. No
paço, hoje transformado em shopping, cada entrada terá um mosaico com as
peças do escritor Ariano Suassuna, paraibano, mas já integrado a
Pernambuco”, explica o guia e enumera, de cabeça, as obras do autor: “ A
Mulher Vestida de Sol, o Auto da Compadecida, a Rainha do Meio Dia e a
Pedra do Reino” .
Nassau
O catamarã passa sob as pontes e em cada uma delas os passageiros,
incitados pelo guia, fazem reverência aos personagens da história. “Essa
parte de Recife era a área boêmia e essa ponte é a primeira ponte do
Brasil, construída por João Maurício de Nassau”, ensina e acrescenta: “O
holandês Nassau decidiu transformar Recife em uma moderna capital. Entre
várias ações engenhou o projeto da cidade Maurícia, um projeto urbanístico
responsável pelos atuais traçados dos bairros de Santo Antônio e São José (centro
antigo da atual Recife), onde drenou terrenos, construiu canais, diques,
pontes e palácios, entre eles o Palácio de Friburgo e da Boa Vista, os
jardins botânico e o zoológico, um museu natural e um observatório
astronômico”, enumerou.
Café com Bandeira
Além de Ariano Suassuna, nomes como
Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, quasares da
literatura brasileira e pernambucana, são contextualizados pelo guia,
inserindo o turista em uma história recente aprendida nos bancos de escola.
“Vou-me embora pra Pasárgada, lá sou amigo do Rei”, aponta o guia
para a estátua de Manuel Bandeira à margem do rio e acrescenta: “Este
poeta maior, sentado ali placidamente, morou ali atrás, na rua da União”.
Fala com a naturalidade de quem tomou um café da tarde com o imortal.
Luto
O guia é tão versátil e plural que não deixou de lembrar aos turistas de
uma perda para a história e turismo religioso de Pernambuco. No mesmo dia
do passeio, sexta-feira (20), morrera Dina Mendonça Pacheco, esposa de
Plínio Pacheco, idealizador do espetáculo em Nova Jerusalém, A Paixão de
Cristo. “Gostaria de lembrar aqui do papel fundamental que foi para o
turismo e para a cultura de Pernambuco, esse gaúcho, jornalista, que teve
como âncora, essa grande mulher, que faleceu hoje”, lamentou.
Leões do Norte
Em uma época em que não se ouve mais
notícias sobre atos heróicos e revoluções a favor da pátria, soa muito bem
aprender (e relembrar) um pouco mais da história de Pernambuco. No embate
entre portugueses e holandeses pelas terras brasileiras, Baruque destaca a ‘bravura
indômita’ do pernambucano, quando de sua insurreição diante da presença
dos holandeses, conhecida como a Batalha dos Guararapes. “É justamente
nesse período, compreendido entre 1645 a 1649 que se dá a vitória contra os
holandeses. E é aí nas Guararapes – aponta para a rua dos Guararapes,
no centro da velha Recife - que nasce a nossa brasilidade, nasce o
epíteto que nós pernambucanos temos de Leões do Norte.”
O papel do guia de turismo é
justamente este – muito bem traduzido por este profissional chamado Baruque
Bernardo: içar do fundo do poço da história pessoal de cada um essa água
límpida, esse peixe ainda vivo, esse caranguejo de mangue, esse adubo
fértil que chamamos de memória.
Serviço:
Catamaran Tours – Passeio de barco pelo rio Capiberibe
Embarque: Cais das Cinco Pontas – Avenida Sul, 50 metros após o Forte das
Cinco Pontas.
Reservas: (81) 3424-2845 – (81) 9973-4077
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* O jornalista Paulo Atzingen viajou
a Recife pela Avianca
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